sexta-feira, 14 de janeiro de 2011


O último dia do ano não é o último dia do tempo.
Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, os irreparáveis uivos do lobo, na solidão.
O último dia do tempo não é o último dia de tudo.Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,uma mulher e seu pé,um corpo e sua memória,um olho e seu brilho,uma voz e seu eco,e quem sabe até se Deus...Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.Teu pai morreu, teu avô também.Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo.
Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,o recurso da bola colorida,o recurso de Kant e da poesia,todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano. As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida. A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
(Carlos Drummond de Andrade)

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